quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Terramoto de 1755: testemunho de Jacome Ratton


«Entre os acontecimentos extraordinarios da minha vida naõ devo omittir a meus filhos o que passei na occasiaõ do memoravel terramoto de Lisboa, que teve lugar no 1.º de Novembro de 1755, pelas nove horas e meia da manhaã; e como fosse dia de Todos os Santos, tinha eu hido á Missa á Igreja do Carmo, cujo tecto era de abobeda de pedra, e derrubado matou muito povo que ali se achava, de cujo perigo escapei por ter hido mais cedo, e me achar na dita hora nas agoas furtadas das minhas casas, mostrando a hum comprador huma partida de papel, que nos tinha vindo avariado, e ali se tinha posto a enxugar. 

Ao sentir o primeiro abalo me occurreraõ muitas reflexoens tendentes a salvara minha vida, e naõ ficar sepultado debaixo das ruínas da propria casa, ou das visinhas, se descendo as escadas fugisse para a rua; mas tomei o partido de subir ao telhado, nas vistas de que abatendo a casa eu ficasse sempre superior ás ruinas. Ja quando eu tomei este expediente era tanta a poeira, que, á maneira do mais denso nevoeiro, impedia a vista, a duas braças de distancia; só passados alguns minutos, que a dita poeira se foi dissipando, he que eu pude ver o interior das casas visinhas, por terem cahido as paredes fronteiras, até aos primeiros andares, ficando os telhados apenas sustidos pelas paredes divisorias. 

Seus habitantes, alguns ainda em camisa, correndo expavoridos de huma a, outra parte imprecavaõ os auxilios do Ceo, e dos homens em seu soccorro. Á vista desta horrivel scena, me resolvi descer as escadas, e fugir para a rua, a fim de buscar alguma parte aonde me julgasse mais seguro. Ao descer as escadas encontrei meus Pais, que afflictos me buscavaõ nas ruínas de hum grande panno da chaminé que tinha cahido, e debaixo do qual me julgavaõ sepultado. Foi inexplicavel o nosso contentamento quando nos encontramos; mas eu sem perder tempo lhes pedi que me accompanhassem para o largo mais proximo, que era ao fundo da rua do Alecrim, e encontrando de passagem D. Maria Castre, nossa visinha, pouco mais ou menos da minha idade, que tambem fugia, a tomei pelo braço, e seguimos a rua dos Remulares por cima de entulhos, e muitos corpos mortos, até á beira-mar, aonde nos julgavamos mais seguros. 

Mas pouco depois de ali ter-mos chegado, assim como muita gente, se gritou que o mar vinha sahindo furiosamente dos seus limites: facto que presenciamos, e que redobrou o nosso pavor, obrigando-nos a retroceder pelo mesmo caminho, e a procurar, pela rua de S. Roque, o alto da Cotovia, entaõ obras do Conde da Tarouca, depois Patriarchal, e hoje Erario novo, aonde tambem vieraõ ter, por diversos caminhos, meus Pais, e os parentes da dita Senhora, todos na maior inquietaçaõ por naõ saberem huns dos outros, como aconteceo a immenso povo, que procurou aquelle sitio descampado, entaõ terras de paõ, desde o alto da rua de S. Bento até a travessa de Pombal e Cardaes de Jesus, havendo apenas algumas casas na rua. que vai desde o pateo do Tijolo, ou obras do Conde de Soure, até a fabrica da seda, que já existia, assim como tambem a casa de D. Rodrigo, actualmente lmprensa Regia, e o Convento dos Jesuitas, hoje Collegio dos Nobres. 

O descampado daquelle alto dava lugar a descobrir-se a cidade por todos os lados, a qual, logo que foi noite, apresentou á vista o mais horrivel espectaculo, das chamas que a devoravaõ cujo claraõ allumeava, como se fosse dia, naõ só a mesma cidade, mas todos os seus contornos, naõ se ouvindo senaõ chôros, lamentaçoens, e chóros entoando o Bemdito, Ladainhas, e Miserere. Por fortuna o ceo se conservava clar e sereno, e o terreno enxuto; por naõ ter até entaõ havido chuvas,. nem as haver por oito dias mais, o que deo occasiaõ a fazer cada hum os arranjos, que lhe permittiaõ as circunstancias.»


Recordaçoens de Jacome Ratton sobre occurrencias do seu tempo em Portugal de 1747 à 1810 - pp. 23-26 [https://books.google.pt/books?id=iHhPAAAAcAAJ]

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